O Brasil passou por um golpe de Estado que ameaça a saúde e a educação, destrói a legislação trabalhista e ameaça as universidades e a liberdade de pensamento. Mas também impõe um novo desafio: compreender que o limite da experiência dos governos progressistas latino americanos vai além do modelo econômico e das alianças com a burguesia porque traz consigo uma ignorância completa do Estado na periferia. Cabe agora uma análise mais aprofundada de como se daria uma disputa pela hegemonia e pelo poder de Estado. Cabe voltar-se a uma concepção de hegemonia que inclui a coerção e reestudar a teoria marxista da política, do Estado e da guerra. O novo padrão de classes sociais, a ausência de direitos e a repressão seletiva restringem espaços de consenso e exigem ver as relações de produção como relações de força e sepultar a ideia de neutralidade do aparato jurídico policial.
Para isso não há outra teoria crítica que a marxista. Com o tempo, as forças antidemocráticas, como o fóssil vivo do fascismo (um celacanto), ressurgem diante dos olhos atônitos. Enquanto aguardamos que a civilidade desperte por si, o mais primitivo rancor cresce sob a barbárie do capital, sua substância. Alguns crêem que não pode haver perda depois da derrota, outros andam em círculo e se preparam para as eleições, outros combatem. Vamos a eles:
A Mouro traz em seu dossiê dessa edição os 100 anos de Revolução russa. Como um rastilho de pólvora, a notícia de que o proletariado tomara o poder abalou o mundo e fez tremer estruturas e convicções até então solidificadas. Do outro lado do Atlântico, por Liz Natali e por Luiz Bernardo Pericás, trazemos Emiliano Zapata e Julio Antônio Mella que, do México ou de Cuba, reverberaram a novidade em suas jornadas revolucionárias, alimentando a esperança de oprimidos de todos os tempos. Em que medida as brisas de longínquos furacões alimentam os torvelinos que ainda se formam entre outros mesmos becos imundos para onde o capital empurra outros mesmos oprimidos? Yuri Martins nos traz reflexões sobre Caio Prado e a Revolução, Marcus Vinicius Biaggi nos traz o embaixador brasileiro na Rússia e seu estranhamento diante do cinematismo das forças engendradas por este marco temporal. Nicolau Bruno de Almeida resgata o anarquista Makhnó, a face libertária desta Revolução, ainda que desprezada pela memória dos vencedores e, na face oposta, Everaldo Andrade nos traz o olhar do historiador sobre quem faz a história: Trotsky. E, por fim, Fernando Sarti traz a crítica, na esperança de que a jornada da classe trabalhadora mude o mundo, reinventando o trabalho.
Reunimos ainda neste número as contradições daqueles dias revolucionários para estes tempos em permanências, discutidas pelo mexicano Carlos Antonio Aguirre Rojas, um balanço do socialismo e do capitalismo no livro de Lenina Pomeranz comentado por Agnaldo dos Santos. A contradição é um lugar por onde a dialética esconde de nossos olhos o que não compreendemos. Este número avança em nossa seção “Valor e violência” a questão do poder em Michel Foucault, pelo professor Silvio Gallo, e na seção “Marxismo”, a crítica econômica entre os desenvolvimentistas e liberais por Mauricio Barbara. Lincoln Secco fala sobre o que diz o silêncio da história sobre os subalternos, em Gramsci: mulheres, racismo, xenofobia.
Na seção “Novas formas de organização e luta”, o velho ensaio socialista, o cooperativismo persistem dentro do capitalismo, assim como as nossas esperanças. Mas, além da história, outras metamorfoses ressurgem como a economia “compartilhada”, recentes fenômenos estudados por Adalberto Coutinho de Araújo Neto e Guilherme Monteiro. Chegamos então a “Arte e Revolução” que nos traz o debate da arte engajada do presídio Tiradentes, por Rogério Mourtada.
Um poema para medir o desespero, por Coelho. Um outro para aliviar a pressão no ranger dos nossos dentes, por Ana Lucia Rebolledo, em forma de homenagem. Homenageamos Dona Marisa Leticia, do fundo de greve do ABC, com um poema na voz de outra mulher, destas que carregam o mundo e, em cima dele, os homens, de uma época em que os helicópteros faziam rasantes sobre os operários em assembléia, apontando suas metralhadoras. Uma vez, os operários sob orientação da direção, rezaram, não havia saída no estádio, a idéia era provocar pânico mas os helicópteros foram desistindo de uma multidão de homens ajoelhados e destemidos. Dona Marisa e os seus se levantaram e saíram da Vila Euclides. Hoje os helicópteros não vão mais embora.
Homenageamos também Antonio Candido, uma voz que durante muito tempo nos tomava profundamente, por sua ternura e sabedoria. Hoje, embora calada, ainda nos fala por dentro.
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